sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Com C de Cheias de Charme

Cheias de Charme chegou ao fim com o mérito de ter marcado uma época. Certamente, muitos se lembrarão, daqui a uns anos, das impagáveis aventuras de Penha, Cida, Rosário, Chayene, Fabian e Socorro. Personagens que, de um modo ou de outro, entraram para o imaginário popular de forma arrebatadora. E o sucesso da novela, que contagiou o Brasil com a história das domésticas emergentes, foi mais do que merecido: um primor de dramaturgia, direção e elenco.

A primeira coisa a ser destacada no contexto da obra é realmente a grata revelação de Filipe Miguez e Izabel de Oliveira. Autores que não se intimidaram com o peso da estreia e fizeram, ao contrário, uma novela redondinha, engraçada, colorida e inteligente. Chamou a atenção, na dramaturgia, a diversidade que povoou a classe C retratada pelos escritores, fugindo da obviedade do estereótipo vazio e enlatado diariamente em produções da Rede Globo. Filipe e Izabel retrataram, acertadamente, o que melhor acontece no contexto das camadas populares: a pluralidade. Nesse cenário, o Borralho foi povoado por tipos bastante simpáticos: a evangélica batalhadora, o grafiteiro engajado, a empregada negra que serve como arrimo de família, explicitando, sutilmente, na medida em que esses elementos são adequados a uma comédia, pequenas tensões inerentes ao estilo de vida desses personagens.

Como contraste, a novela também mostrou a vida dos ricos moradores de um condomínio muito próximo e constantemente frequentado pelos moradores da comunidade carente, uma forma sagaz de demonstrar questões interessantes como a função de dormitório que certas vilas têm em relação à cidade (verdadeiros depósitos de trabalhadores de baixa renda para bairros mais ricos) ou a crescente e positiva mistura de classes decorrente da constante emergência e do aumento do poder de consumo da população menos abastada. Em outras palavras, os autores conseguiram explicitar, de maneira extremamente perspicaz, as novas configurações de relações sociais em desenvolvimento no século XXI. Tudo isso com muita cor, diversidade, sem estereótipos fáceis e vazios. Nessa conjuntura, a propósito, desenvolveu-se a bem-humorada rivalidade entre patroas e empregadas sem, contudo, descambar para um arriscado e capenga maniqueísmo: o folhetim também contava com patroas bem-intencionadas (como Lygia, personagem de Malu Galli) e empregadas oportunistas (como Socorro, personagem de Titina Medeiros).

Em plano diferente, o texto de Filipe e Izabel também teve mérito por conta de sua qualidade. Grande parte do sucesso da novela, a propósito, deve-se a ele. Em incontáveis momentos, tiradas sarcásticas, trocadilhos bem-sacados e situações esdrúxulas espertamente arquitetadas ditaram o tom do excelente humor veiculado pelo folhetim. Em muitos momentos, tais menções foram tão sutis que fugiram de um telespectador menos atento, sinal claro de que o exercício de escrita diário do folhetim, em que pese ser extremamente industrial, não foi em nenhum momento negligenciado, mas minuciosamente pensado e estruturado com cuidado. Junto a isso, Cheias de Charme trouxe uma série de referências impagáveis, como Lady Gaga, Gabriela e Kill Bill. A receita perfeita de uma novela que, além de popular, cumpriu também a missão de ser pop.

A direção de Denise Saraceni também foi, evidentemente, acertadíssima. Efeitos de transição de cena, o clima propositadamente meio over, cenários, figurinos, trilha sonora, tudo parece ter sido meticulosamente pensado para retratar o universo da classe C. Extraiu-se desse universo, assim, a cor, a alegria, a superação, características traduzidas na fotografia, nas locações, na abertura. Fruto, é claro, da ótima estratégia de retratar o mundo popularesco de forma conceitual. A classe C, neste sentido, tornou-se o tema central da novela, sendo exposta e retratada da melhor forma possível, escapando das caricaturas às quais facilmente se chega sem um olhar mais detalhado sobre esse cenário

Por fim, o elenco da novela das sete foi escolhido a dedo: protagonistas carismáticas, antagonistas impagáveis, coadjuvantes cativantes. Atuações impecáveis foram a regra da novela: Taís Araujo, Isabelle Drummond, Leandra Leal, Cláudia Abreu, Ricardo Tozzi,  Malu Galli, Marcos Palmeira, Humberto Carrão, Aracy Balabanian, Alexandra Richter, Tato Gabus, Giselle Batista, Simone Gutierrez, Rodrigo Pandolfo, Chandelly Braz, Daniel Dantas, Titina Medeiros, entre tantos outros atores com interpretações irrepreensíveis. Um elenco afinado já é, convenhamos, meio caminho andado para o sucesso.

Enfim, Cheias de Charme deixa o horário com certa saudade. Com louvor, conseguiu escapar do engessamento criativo que a recente política de evidência da classe C vem causando aos autores. E escapou, vale dizer, da melhor maneira possível: Transformando o popular em protagonista, tirando-o da posição de apêndice estéril e estereotipado. Prova de que, ao contrário de João Emanuel Carneiro e Aguinaldo Silva, os autores de Cheias de Charme entenderam que, para fazer uma novela com popularidade, não é preciso subestimar o telespectador popular. Pelo contrário, a novela de Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, seguindo a esteira das excelentes comédias das sete da década de 80, conseguiu aliar popularidade e inteligência. Enquanto que em Avenida Brasil, por exemplo, o telespectador é colocado como mico de circo, tipo esdrúxulo, cômico e causador do riso fácil, em Cheias de Charme, em sentido oposto, ele se reconheceu, compadeceu-se com seus próprios dilemas e, em última instância, riu de si mesmo. 

AVALIAÇÃO: ÓTIMA


Nenhum comentário:

Postar um comentário