sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A redenção de Amor à Vida: Como Walcyr Carrasco fez uma novela torta tornar-se inesquecível

Vinha dizendo que, à parte de todos os absurdos de conteúdo e enredo que permeavam o texto de Amor à Vida, a novela entraria para a história. O progressismo moral do folhetim de Carrasco já era inegável há alguns meses. Pois bem: o capítulo final do début do autor no horário nobre confirmou essas impressões. Desde pequenas revoluções de vocabulário à exposição sem medo de novas configurações familiares, Amor à Vida fechou a sua história com coerência e uma bela trajetória de redenção: não só de seu protagonista, Félix, mas de todo o conjunto.

Foi bonito de ver a ex-chacrete Márcia, uma personagem de mente aberta e fadada a uma vida marginal, terminar feliz e bem de vida com o seu novo marido, o mulherengo (e também não muito ortodoxo) Gentil.  E o melhor: dançando Chacrinha sem muitos pudores. Edith, por sua vez, acabou a novela aos beijos com o seu amante tatuado em um inferninho paulistano. Já o quadrado Patrícia-Michel-Guto-Sílvia, embora enfadonho em muitos momentos, coroou a diversidade de tipos familiares apresentada por Carrasco: no fim das contas, os quatro se tornaram uma grande família - junto com os seus filhos, é claro. E o que dizer de Linda, papel defendido brilhantemente por Bruna Linzmeyer? Muitos citam a inverossimilhança da história, a impossibilidade de um autista se relacionar com alguém a níveis tão elevados de intimidade. Mas este é um caso típico em que o ganho ficcional supera qualquer inverossimilhança. Numa espécie de radicalização do sonho de Carly Fleischmann, a história de Linda emocionou, ganhou cenas magníficas e de quebra suscitou duas discussões inéditas em telenovelas: a relação de um autista com o mundo - e vale aqui reiterar o belo trabalho de composição da atriz - e a vida afetiva de pessoas consideradas incapazes - tema tratado em um belo fime norte-americano, The Other Sister.

Mas é claro que uma apologia de Amor à Vida não pode escapar do óbvio marco dramatúrgico que o folhetim de Carrasco trouxe às telenovelas: o beijo gay. A abordagem da homossexualidade, já disse em outros textos, foi incrivelmente engenhosa nesta novela. O homossexual foi inserido nas famílias, humanizado da melhor forma possível. Deixou de ser o mico de circo, o "Crô" palhaço e pobre dramaturgicamente. Tornou-se rico em feições: o ressentido, o sonhador, o calculista. Félix, Nico e Eron inseriram-se entre os outros personagens, não ficaram presos em uma injusta ilha de humor caricato à parte de outros núcleos. Riram, sofreram, causaram choro e torcida. Carrasco, antes de tudo, humanizou os homossexuais de maneira nunca antes vista. E foi ardiloso: deu asas à vilã Amarillys, converteu Nico no mocinho da história e transformou Félix em um adorável herói. Primeiro, porém, colocou o personagem de Fragoso no fundo do poço, fez com que a dona de casa mais católica e conservadora de Higienópolis se compadecesse com sua dor. A dor de um homem que, antes de ser homossexual, era apenas um homem enganado pelo próprio marido. E todos vibraram com sua volta por cima, com sua paixão por Félix e com tudo o que ele fez para conquistá-lo. É é por isso, vale dizer, que Amor à Vida foi a primeira novela, sem dúvida, a ganhar a ampla torcida por um beijo gay na TV: o público percebeu que gays têm humanidade.

É claro que Félix nunca foi qualquer personagem. Desde o início, Félix era arrebatador. Obviamente, Paolla Oliveira não é a melhor das atrizes para fazer frente ao talentoso Mateus Solano. Independentemente disso, Carrasco soube construir um dos tipos mais interessantes da história das novelas. Curiosamente, um tipo comum em nossas vidas: o amigo gay sarcástico, convenhamos, é algo que todo mundo tem. Mas a TV, por censura moral, sempre relutou em retratá-lo. Na esteira dos novos tempos, Walcyr apenas deu vida ficcional a um arquétipo potencialmente genial - do Lord Henry Wotton, de O Retrato de Dorian Gray, ao seu amigo irônico de adolescência que também gostava de meninos. Não se trata, porém, de um arquétipo estereotipado, mas de um modelo de personagem que provoca - algo que Félix, a propósito, demonstrou muito bem - traços de personalidade de caráter único. E, mais uma vez, voltamos ao ponto chave: a humanização dos personagens gays.

Quem acompanha o blog com alguma frequência sabe que não sou a maior fã da obra de Walcyr Carrasco. Sempre relutei em embarcar em suas viagens excessivamente didáticas e mal-elaboradas. No entanto, é inegável que ele vem conseguindo subverter com talento ímpar o que se vê na televisão. Algo, aliás, que eu já percebia em Gabriela. É claro que Walcyr já mostrou em sua obra provas de que frequentemente entende mal questões importantes. Só para citar um exemplo, vou mencionar Bernadete, de Chocolate com Pimenta, que insistia em brincar de carrinho, de futebol, fazer coisas de menino, passando para o público a grande bobagem de que nascemos com um gênero inato - uma completa ignorância ao que se entende por gênero na contemporaneidade. Mesmo em Amor à Vida, o tema de Perséfone descambou para um mau gosto insuperável: a gordofobia chegou a ser legitimada em nome de meia dúzia de piadas horrendas. Ainda assim, Walcyr é o autor que mais consegue se destacar em uma certa coragem de falar com engenhosidade o que ninguém consegue dizer. E, ainda que o controverso autor se esbalde em lugares-comuns não muito agradáveis (o péssimo texto dito ao pé da letra, os incessantes discursos piegas, os recursos pobres que ele reaproveita de outras novelas), digo, com um ar de acerto de contas, que Walcyr Carrasco é um mal necessário.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Sobre a importância do beijo gay

Amor à Vida padeceu de certos problemas de autoria, já sabemos. No entanto, é fato também que Walcyr Carrasco levou a questão homoafetiva às últimas consequências. Talvez tenha sido o maior avanço em relação ao tema desde Insensato Coração, novela da dupla Braga e Linhares. Mérito, é claro, de Carrasco, que em meio a um mar de devaneios, soube levar a história de Félix e Niko com sabedoria ímpar. Se Insensato Coração assumiu um tom político, Amor à Vida se esforçou, com louvor, em inserir a homossexualidade em questões familiares. O pai preconceituoso, o casal gay que deseja ter filhos, assuntos que, no fim das contas, tornaram-se protagonistas da trama. Assim, ainda que a novela tenha carregado sérios percalços de dramaturgia, pode-se dizer que Amor à Vida marcou o horário por sua ousadia em um assunto que a Rede Globo insiste em tratar com certo véu. Se na péssima Fina Estampa o caricato e tacanho Crô funcionava como mico de circo, na novela de Walcyr os personagens gays tinham histórias mais complexas e, até por isso, conquistaram o público de maneira nunca antes vista. 

Interessante, dessa forma, que um folhetim que abarcou tantos dilemas tenha estourado justamente na esteira de um tema tratado de modo velado. Prova de que o público se interessa e está disposto a aceitar a dinâmica das novas famílias. Cabe à Globo, com isso, mostrar algo que, embora não tenha nada de muito diferente, ainda é uma incógnita para a maioria dos telespectadores: o afeto entre pessoas do mesmo sexo. E o beijo gay, como manifestação de afeto típica de qualquer casal, é um emblema fundamental. É mais do que um beijo, é um ato capaz de revolucionar o modo pelo qual o brasileiro enxerga um assunto tão delicado. Trata-se da desmistificação de algo considerado marginal: o beijo gay, agora, não é um beijo qualquer, como insinuou Antonio Fagundes em uma entrevista pra lá de equivocada. Mas se dado em rede nacional, tornar-se-á, inevitavelmente, como qualquer outro. E, neste sentido, cumprirá o seu papel fulcral: um passo, ainda que modesto, em direção à superação do preconceito popular que ronda não só as manifestações homoafetivas, mas a própria relação entre pessoas do mesmo sexo. Esperemos.

Walcyr Carrasco e a falta de senso de autoria: quando o autor se acha mais importante que a obra

Reiteradamente Walcyr Carrasco vem demonstrando ojeriza aos cacos que seus atores colocam em seu texto. Exige que os diálogos sejam ditos da forma como estão escritos, sem tirar nem pôr. No entanto, essa concepção de dramaturgia passa longe de uma produção cênica de mínima qualidade. O texto, obviamente, é importante, mas é apenas uma base para algo que pode ser chamado de "autoria coletiva". Não só o autor tem papel fundamental na construção textual de uma personagem: o ator, que já influi no papel com os seus trejeitos, também participa do processo construtivo a partir dos cacos. E digo mais: na novela e no teatro, de forma óbvia, o público entra, outrossim, nessa conta. Uma novela pode mudar completamente por vontade do povo. E não só no enredo, mas também no conteúdo vocabular. A plateia teatral, por sua vez, dita o ritmo da reação dos atores e, por conseguinte, a forma pela qual eles ditam o texto. Isso sem contar, é claro, com a direção, com a edição e com todo o corpo técnico que, além de ser responsável pela "cara" da novela, pode, no fim das contas, fazer mudanças na dinâmica textual. Um exemplo bem-sucedido disso é Amora Mautner, que imprimiu a improvisação no núcleo de Tufão, em Avenida Brasil. A obra, assim, transcende o autor. E ele, é claro, não deixa de ser menos autor por isso. Já imaginaram se todas as adaptações de Tchekhov fossem rigorosamente fiéis ao texto original? 

Enfim, essa acepção restritiva de autoria certamente resvala na qualidade das produções de Carrasco. Seus textos são recitados, pouco emocionantes, declarados como se estivessem inseridos em um teatro escolar. Um assassinato ao senso de arte dramática. 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os melhores de 2013 eleitos pelo blog

Atuação em Série Nacional: Marília Pêra (Pé Na Cova)

Série Nacional: A Menina Sem Qualidades (Filipe Hirsch)

Trilha Sonora: Joia Rara (Amora Mautner)

Fotografia: A Menina Sem Qualidades (Inti Briones)

Figurino: Saramandaia (Gogoia Sampaio)

Direção de Arte: Saramandaia (Guga Feijó)

Abertura: Pé Na Cova

Direção: Felipe Hirsch (A Menina Sem Qualidades)

Autor: Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari (Sangue Bom)

Ator Coadjuvante: Thiago Fragoso (Amor à Vida)

Atriz Coadjuvante: Elizabeth Savalla (Amor à Vida)

Ator: Mateus Solano (Amor à Vida)

Atriz: Giovanna Antonelli (Salve Jorge)

Novela: Saramandaia (Ricardo Linhares)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Sobre Amores Roubados e Além do Horizonte

Amores Roubados se consagrou com uma grandes obras da teledramaturgia dos últimos tempos. A linguagem poética da direção, assinada por Villamarim e composta por nomes como Walther Carvalho, ditou a tônica de extrema qualidade que permeou os takes do seriado. A trilha sonora e os recursos textuais também merecem menções das mais elogiosas. Cabe, aqui, destacar os acertados apelos do roteiro, como a técnica de repetição exaustiva da última palavra da fala da personagem, a título de dar um tom reticente ao diálogo. George Moura, aliás, mostrou extremo bom gosto: não foi apelativo em nenhum momento. Cenas de nudez bem colocadas e uma clara preocupação em evitar o estereótipo excessivo do tipo nordestino. A adaptação, a propósito, foi muito bem elaborada: a contextualização de um texto do séc. XIX pareceu coisa fácil para o talentoso autor. Se Dira Paes ditou o tom da primeira semana da minissérie, a segunda foi de Murilo Benício. Em uma composição segura, passional e empolgante, Murilo aos poucos vai se transformando no nosso melhor ator de composição. Bebendo na água de nomes como Al Pacino, Murilo sabe explorar as tintas dos seus personagens. Cássia Kis Magro, Osmar Prado, Patrícia Pillar, Jesuíta Barbosa, Irandhir Santos e a própria Dira, é claro, ajudaram a completar o elenco que indubitavelmente entra pra história como um dos mais bem-escalados de todos os tempos. Mais um mérito da produção.


Além do Horizonte, obra que também atravessa o eixo de Ricardo Waddington, é ágil sem perder a coerência de enredo. A trama prende e não se ocupa das barrigas que geralmente pululam em novelas tradicionais. Por que, então, a nova novela das sete não consegue emplacar no Ibope? O primeiro motivo é óbvio: a inadequação do horário. A faixa das 19 horas, acostumada às tradicionais comédias cheias de esquetes de fácil assimilação, certamente não é o horário mais adequado para veicular uma atração do gênero. Além disso, o elenco principal é fraco. À parte de bons nomes no time coadjuvante (Carolina Ferraz, Antonio Calonni, etc.), o público não parece muito interessado em ver as aventuras encabeçadas pelo eternamente inexperiente Thiago Rodrigues. Vinicius Tardio, até aqui, só  mostrou que precisa estudar mais. Juliana Paiva tem potencial, mas sofre com o pouco apelo que o seu nome ainda desperta. Ainda, é preciso ressaltar que a trama, embora dinâmica e bem-escrita, sofre de certos elementos que pendem para o burlesco até para o gênero do suspense lúdico: epítetos como "o grande mentor" e "a máquina da felicidade" poderiam ser evitados, convenhamos. Por fim, não podemos nos esquecer que Além do Horizonte sucede a excelente Sangue Bom, novela que soube aliar a sua extrema qualidade textual a elementos de cunho popular. Desgarrar-se de boas novelas pode ser uma tarefa árdua.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Impressões: Amores Roubados

Amores Roubados estreou em meio à polêmica envolvendo Cauã Reymond e Isis Valverde. Pode-se dizer, entretanto, que a dupla só se destacou nesse sentido. Foi impossível não ver o casal sumir na primeira semana da microssérie: parte por conta de suas equivocadas composições (pautadas em um sotaque completamente inverossímil e caricato), parte por conta do talento inegável dos coadjuvantes. Murilo Benício, Cássia Kis Magro, Patrícia Pillar, Osmar Prado e Dira Paes estavam simplesmente impecáveis. Isso sem contar com a rica gama de ótimos estreantes: aqui, podemos citar Irandhir Santos, que já foi destaque em excelentes produções do cinema nacional (por exemplo, Tatuagem). De todo modo, o blog precisa ressaltar o extremo talento de Dira Paes. No papel da esposa infiel, a atriz chamou a atenção não só pela boa forma, mas também por uma atuação digna das maiores premiações. Dira, conhecida por ser musa do cinema, aos poucos vem se transformando, também, em musa da televisão. Sua Celeste é sedutora, dissimulada, apaixonante. E, Dira, não preciso nem ressaltar, é a grande responsável pelo sucesso.

O texto de George Moura é obviamente bom, mas às vezes não consegue escapar de certos elementos datados do argumento do livro original: a simples história do Don Juan é batida e já não empolga em um horário que exige certa complexidade dramática (o final do livro, entretanto, é promissor). No entanto, esse problema é contornado pelas já mencionadas excelentes interpretações (à exceção do pouco afinado casal principal) e pela direção arrebatadora. Villamarim, assim como a colega de núcleo, Amora Mautner, prova em mais um trabalho que é um dos grandes talentos artísticos da emissora. O seu bom gosto ao eleger o conjunto (de direção de arte à trilha sonora) é notável. Ressalta-se também a fotografia do habilidoso Walter Carvalho, responsável, inclusive, pelas belas imagens vistas em Lado a Lado (novela que ganhou o Emmy e foi eleita por este blog como a melhor novela de 2012). A equipe de Amores Roubados traz, sem dúvida, um belíssimo trabalho para a primeira faixa de shows da Rede Globo. Vale a pena acompanhar e esperar pela última semana.