Lado
a Lado, sem dúvida, merece o posto de grande novela. Em plena estreia, João
Ximenes Braga e Cláudia Lage deram um show de dramaturgia, construindo uma
novela de época nada convencional. Do mesmo modo, o núcleo de direção soube
levar o vanguardismo do texto para os cenários, figurinos, trilha sonora e
fotografia. Vanguardismo, a propósito, é a palavra certa para definir esse
folhetim. Travestida de século XX, a trama trouxe críticas plenamente válida
para os nossos tempos. A estratégia, inteligentíssima, permitiu que os autores
driblassem o rigoroso código moralista da Rede Globo, uma espécie de padrão de
conduta à la cinema norte-americano da década de 70. Essa liberdade, como
consequência, favoreceu a apresentação de temas geralmente negligenciados, como
o preconceito em relação ao candomblé, a violência policial e os movimentos
microrrevolucionários capitaneados por negros pobres (caso da capoeira). Além
disso, a estratégia de apresentar problemas modernos em uma novela de época
proporcionou um choque de realidade ao telespectador mais esperto: em cem anos,
pouca coisa mudou. A mulher, embora tenha conquistado seu espaço no mercado de
trabalho, continua em posição bastante desfavorável. Lado a Lado, em pleno
século XX, conseguiu dar um panorama atual sobre o problema feminista de uma
maneira muito mais eficiente do que o equivocado remake de Guerra dos Sexos. Do
mesmo modo, o negro também permanece como vítima de preconceito. Marginalizado,
excluído e alvo de desconfianças, o preconceito racial é algo que respinga em
sua cultura: religião, artes marciais, música e todo um conjuntos de costumes
que é colocado em um plano menor. Ademais, outros temas típicos do século XXI
pulularam na rebuscada fotografia de Lado a Lado: a mentalidade aristocrata da
sociedade brasileira, a violência e o despreparo da polícia brasileira, a
situação precária dos morros e favelas. Em outras palavras, embora estejamos “lado
a lado” há mais de um século, o Brasil permanece com os mesmos problemas estruturais:
a desigualdade social, a discriminação racial, as mazelas de uma sociedade
oligárquica e extremamente machista. A dica, dada pelos próprios autores, veio ao
final do excelente último capítulo, que terminou, justamente, com a imagem do
contraste do Rio atual: o Morro da Providência surgiu como contraponto à Zona
Sul carioca. Uma imagem emblemática.
Com
base no conceito nada convencional de novela de época, a direção, comandada por
Dennis Carvalho e Vinicius Coimbra, trouxe elementos pouco compromissados com a
ideia encaixotada e rigorosa de novela de época. Figurinos leves e modernos
deram o tom das personagens, desde os cabelos soltos de Laura (Marjorie
Estiano) às peças esvoaçantes e desprovidas de manga de Isabel (Camila
Pitanga). A trilha sonora, no mesmo sentido, era composta por músicas
alternativas atuais, uma seleção, vale dizer, de muitíssimo bom gosto. De Nação
Zumbi a Nando Reis, o folhetim nos premiou com canções escolhidas a dedo para
cada situação. Vale destacar, também, a primorosa fotografia, que teve sua
idealização criada pelo renomado Walter Carvalho. Por fim, cabe destacar o
excelente elenco. Patrícia Pillar, é claro, foi o grande destaque. A atriz, que
parece melhorar a cada novela, compôs uma Constância completamente diferente de
sua personagem mais lembrada, a vilã Flora de A Favorita (2008). Na pele da Baronesa
da Boa Vista, Patrícia conseguiu passar toda a pompa e a vaidade de um ego
sustentado pelos títulos e tradição de sua família. No último capítulo, a
intérprete de Constância deu uma aula à parte: o embate final entre sua
personagem e Assunção, papel defendido por Werner Schünemann, impactou. O
elenco, porém, era fenomenal e trouxe, junto com o desempenho de Pillar, outras
atuações espetaculares: Marjorie Estiano, mais uma vez, tirou o fôlego dos seus
telespectadores. Chamou a atenção a cena em que sua personagem, Laura, sofre
uma tentativa de estupro no gabinente de um senador. A colega de protagonismo
de Marjorie, Camila Pitanga, também teve um excelente desempenho, principalmente
em suas cenas com Milton Gonçalves, outro ator responsável por uma
interpretação magistral. Caio Blat, por sua vez, prova a cada novela que é um
dos melhores atores de sua geração. Um ator que já nasceu pronto e que
interpreta com a mesma facilidade de atores experientes. Alessandra Negrini,
afastada da tv há algum tempo, acertou em cheio em sua composição mais teatral.
O tom de Alessandra caiu como uma luva para a sua cínica e dissimulada
personagem, a cantora lírica Catarina. Com os já mencionados, somam-se outras
memoráveis interpretações: Lázaro Ramos, Thiago Fragoso, Cássio Gabus Mendes,
Maria Clara Gueiros, Emílio de Melo, Isabela Garcia, Zezé Barbosa, Rogéria, Sheron
Menezzes, Débora Duarte, Priscila Sol, Maria Clara Gueiros, Álamo Falcó, Werner
Schünemann, Marcello Melo Jr., Bia Seidl, entre outros. Duas coadjuvante
merecem um destaque especial: Christiana Guinle, que arrasou na pele da
invejosa Carlota, e Ana Carbatti, que deu vida à rancorosa Zenaide. As duas,
excelentes em suas personagens, merecem mais atenção dos diretores. Nesse
elenco maravilhosamente escalado, apenas duas exceções negativas: Klebber
Toledo e Rhaisa Batista, ambos muito verdes e pouco à vontade em cena.
Mas
como nem tudo é perfeito, Lado a Lado apresentou, em seu último mês, um enredo
razoavelmente arrastado. Nada que comprometesse, no entanto, o conjunto. Essa “barriguinha”,
aliás, foi muito bem compensada por uma dinâmica e instigante semana final.
Enfim,
Lado a Lado se despediu dos telespectadores com um saldo extremamente positivo.
Com a missão de ser uma novela de época, trouxe bem mais: converteu-se em uma
alegoria crítica, ácida e contemporânea. O texto da ótima dupla de autores
trouxe cultura sem cair na pedância chata que volta e meia enreda veteranos
como Aguinaldo Silva. Além disso, João Ximenes e Cláudia, com a ajuda, é claro,
do mestre Gilberto Braga, mantiveram-se coerentes. Ao largo da pressão por audiência,
Lado a Lado seguiu o seu curso natural e não fez grandes mudanças de roteiro ou
de direção. A qualidade prevaleceu.
Avaliação:
ÓTIMA