sábado, 16 de março de 2013

A época avant-garde


Lado a Lado, sem dúvida, merece o posto de grande novela. Em plena estreia, João Ximenes Braga e Cláudia Lage deram um show de dramaturgia, construindo uma novela de época nada convencional. Do mesmo modo, o núcleo de direção soube levar o vanguardismo do texto para os cenários, figurinos, trilha sonora e fotografia. Vanguardismo, a propósito, é a palavra certa para definir esse folhetim. Travestida de século XX, a trama trouxe críticas plenamente válida para os nossos tempos. A estratégia, inteligentíssima, permitiu que os autores driblassem o rigoroso código moralista da Rede Globo, uma espécie de padrão de conduta à la cinema norte-americano da década de 70. Essa liberdade, como consequência, favoreceu a apresentação de temas geralmente negligenciados, como o preconceito em relação ao candomblé, a violência policial e os movimentos microrrevolucionários capitaneados por negros pobres (caso da capoeira). Além disso, a estratégia de apresentar problemas modernos em uma novela de época proporcionou um choque de realidade ao telespectador mais esperto: em cem anos, pouca coisa mudou. A mulher, embora tenha conquistado seu espaço no mercado de trabalho, continua em posição bastante desfavorável. Lado a Lado, em pleno século XX, conseguiu dar um panorama atual sobre o problema feminista de uma maneira muito mais eficiente do que o equivocado remake de Guerra dos Sexos. Do mesmo modo, o negro também permanece como vítima de preconceito. Marginalizado, excluído e alvo de desconfianças, o preconceito racial é algo que respinga em sua cultura: religião, artes marciais, música e todo um conjuntos de costumes que é colocado em um plano menor. Ademais, outros temas típicos do século XXI pulularam na rebuscada fotografia de Lado a Lado: a mentalidade aristocrata da sociedade brasileira, a violência e o despreparo da polícia brasileira, a situação precária dos morros e favelas. Em outras palavras, embora estejamos “lado a lado” há mais de um século, o Brasil permanece com os mesmos problemas estruturais: a desigualdade social, a discriminação racial, as mazelas de uma sociedade oligárquica e extremamente machista. A dica, dada pelos próprios autores, veio ao final do excelente último capítulo, que terminou, justamente, com a imagem do contraste do Rio atual: o Morro da Providência surgiu como contraponto à Zona Sul carioca. Uma imagem emblemática.

Com base no conceito nada convencional de novela de época, a direção, comandada por Dennis Carvalho e Vinicius Coimbra, trouxe elementos pouco compromissados com a ideia encaixotada e rigorosa de novela de época. Figurinos leves e modernos deram o tom das personagens, desde os cabelos soltos de Laura (Marjorie Estiano) às peças esvoaçantes e desprovidas de manga de Isabel (Camila Pitanga). A trilha sonora, no mesmo sentido, era composta por músicas alternativas atuais, uma seleção, vale dizer, de muitíssimo bom gosto. De Nação Zumbi a Nando Reis, o folhetim nos premiou com canções escolhidas a dedo para cada situação. Vale destacar, também, a primorosa fotografia, que teve sua idealização criada pelo renomado Walter Carvalho. Por fim, cabe destacar o excelente elenco. Patrícia Pillar, é claro, foi o grande destaque. A atriz, que parece melhorar a cada novela, compôs uma Constância completamente diferente de sua personagem mais lembrada, a vilã Flora de A Favorita (2008). Na pele da Baronesa da Boa Vista, Patrícia conseguiu passar toda a pompa e a vaidade de um ego sustentado pelos títulos e tradição de sua família. No último capítulo, a intérprete de Constância deu uma aula à parte: o embate final entre sua personagem e Assunção, papel defendido por Werner Schünemann, impactou. O elenco, porém, era fenomenal e trouxe, junto com o desempenho de Pillar, outras atuações espetaculares: Marjorie Estiano, mais uma vez, tirou o fôlego dos seus telespectadores. Chamou a atenção a cena em que sua personagem, Laura, sofre uma tentativa de estupro no gabinente de um senador. A colega de protagonismo de Marjorie, Camila Pitanga, também teve um excelente desempenho, principalmente em suas cenas com Milton Gonçalves, outro ator responsável por uma interpretação magistral. Caio Blat, por sua vez, prova a cada novela que é um dos melhores atores de sua geração. Um ator que já nasceu pronto e que interpreta com a mesma facilidade de atores experientes. Alessandra Negrini, afastada da tv há algum tempo, acertou em cheio em sua composição mais teatral. O tom de Alessandra caiu como uma luva para a sua cínica e dissimulada personagem, a cantora lírica Catarina. Com os já mencionados, somam-se outras memoráveis interpretações: Lázaro Ramos, Thiago Fragoso, Cássio Gabus Mendes, Maria Clara Gueiros, Emílio de Melo, Isabela Garcia, Zezé Barbosa, Rogéria, Sheron Menezzes, Débora Duarte, Priscila Sol, Maria Clara Gueiros, Álamo Falcó, Werner Schünemann, Marcello Melo Jr., Bia Seidl, entre outros. Duas coadjuvante merecem um destaque especial: Christiana Guinle, que arrasou na pele da invejosa Carlota, e Ana Carbatti, que deu vida à rancorosa Zenaide. As duas, excelentes em suas personagens, merecem mais atenção dos diretores. Nesse elenco maravilhosamente escalado, apenas duas exceções negativas: Klebber Toledo e Rhaisa Batista, ambos muito verdes e pouco à vontade em cena.

Mas como nem tudo é perfeito, Lado a Lado apresentou, em seu último mês, um enredo razoavelmente arrastado. Nada que comprometesse, no entanto, o conjunto. Essa “barriguinha”, aliás, foi muito bem compensada por uma dinâmica e instigante semana final.

Enfim, Lado a Lado se despediu dos telespectadores com um saldo extremamente positivo. Com a missão de ser uma novela de época, trouxe bem mais: converteu-se em uma alegoria crítica, ácida e contemporânea. O texto da ótima dupla de autores trouxe cultura sem cair na pedância chata que volta e meia enreda veteranos como Aguinaldo Silva. Além disso, João Ximenes e Cláudia, com a ajuda, é claro, do mestre Gilberto Braga, mantiveram-se coerentes. Ao largo da pressão por audiência, Lado a Lado seguiu o seu curso natural e não fez grandes mudanças de roteiro ou de direção. A qualidade prevaleceu.


Avaliação: ÓTIMA

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